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Os museus face ao Covid: Uma ponte sobre águas revoltas

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European Seminar 2021
Europe’s “Big Museums” and Covid: The biggest museums talk about the impact: Present and future1
ICOM Europe, 30 de março de 2021, 13h00 (GTM)

“Oh, when times get rough
[…]
Like a bridge over troubled water
I will lay me down”
Paul Simon

O ICOM Europe promoveu uma webinar com o propósito de discutir o presente e as perspetivas dos grandes museus europeus no atual contexto de pandemia de Covid-19. O impacto da crise é um fenómeno global que não deixa os museus incólumes. Em maior ou menor grau, todos os museus sofrem os efeitos do confinamento, da falta de visitantes e da consequente quebra abismal de receitas. No entanto, se todos são atingidos pela crise, são provavelmente os maiores museus, aqueles cuja política se fundamentava em torno do eixo do turismo internacional e das multidões que circulavam de forma desenfreada por circuitos superpovoados e cuja gestão contava com os rendimentos colhidos nas bilheteiras, mas também nos espaços de restauração e nas lojas a que acorriam visitantes ávidos de consumo e da aquisição de memorabilia, esses são aqueles que se veem mais feridos naquilo que se tornou a sua essência.

Daí a importância desta webinar, em que participaram Alberto Garlandini, Presidente do ICOM, Lazare Eloundou Assomo, Diretor de Cultura e Emergências no setor cultural da UNESCO, e Luís Raposo, presidente do ICOM Europa, que moderou o painel de conferencistas onde estiveram representados os maiores museus europeus: Dominique de Font-Réaulx, (Musée du Louvre); Barbara Jatta (diretora dos Musei Vaticani); Sarah Saunders (British Museum); Mikhail Piotrovski (diretor-geral do Museu Hermitage); Daniel Slater (Victoria & Albert Museum); Bruno Maquart, (presidente da Universcience / Cité des Sciences et de l’Industrie); Karina Marotta (Museo del Prado); Taco Dibbits (diretor do Rijksmuseum); James M. Bradburne (diretor-geral da Pinacoteca di Brera); Julia Derouvray (Centre Pompidou).

A questão de fundo é essencialmente pragmática: todos os museus, em maior ou menor grau, enfrentam problemas de subsistência. Barbara Jatta foi perentória neste aspeto, embora dirija um museu para o qual, há algum tempo, a crise seria algo inimaginável, o que obriga a reequacionar as fragilidades deste setor.

No entanto e igualmente comum a todos, passa a perceção da crise como um desafio, mas também como uma hipótese de transformação. Mesmo em Mikhail Piotrovski, que assumiu que o museu não precisa de se (re)inventar. E, de facto, o museu enquanto espaço cultural, de ensino informal, de partilha e discussão do conhecimento, de preservação e comunicação do património, esse é um valor persistente. O que se perspetiva é a mudança das suas formalizações em função das mudanças sofridas pela sociedade nesta crise.

O encerramento permitiu a realização de tarefas difíceis de executar com o fluxo habitual de visitantes, nomeadamente no que respeita à manutenção e à atualização das infraestruturas.  Além disso, esta foi uma oportunidade de repensar a exposição e os discursos que lhe são inerentes. Dominique de Font-Réaulx referiu a necessidade de adaptação à passagem de um afluxo de cerca de dez milhões de visitantes anuais, de proveniências geográficas e culturais muito heterogéneas, para um número consideravelmente reduzido de visitantes, essencialmente, franceses. O mesmo fenómeno foi registado nos outros museus, traduzindo-se na necessidade de criar estratégias aproximação às comunidades locais. Sarah Saunders, referindo a continuidade possível das estratégias habituais do museu em ambiente virtual, através da página “British Museum from home” no website do museu, com ligações à coleção, a visitas pelo espaço expositivo, a eventos, a outros canais de comunicação do museu, assumiu que a reabertura está a ser preparada nesta perspetiva de mudança em relação ao paradigma anterior. Também Karina Marotta realçou o reforço das atividades virtuais e os programas para famílias, ao mesmo tempo que o espaço expositivo está a ser repensado e projetado enquanto ponto de reencontro com a cultura. A mesma preocupação está subjacente em Mikhail Piotrovski, ao falar no museu enquanto “wonderful way to exhibit history” de forma inclusiva, adaptando os discursos em diversas linguagens de forma a integrar pessoas com diferentes necessidades (físicas, culturais, sociais, económicas, éticas).

Ao longo do último ano, os museus foram sendo levados a encarar às circunstâncias nefastas da crise como uma oportunidade de mudança, refrescamento dos discursos e de atualização à sociedade contemporânea, sem perder a identidade, como avisou Mikhail Piotrovski. Karina Marotta exemplificou a reformulação do discurso no Museo del Prado, com a elaboração de novas narrativas criando conexões inéditas entre as obras expostas, numa estratégia de baixo custo para atrair e manter a atenção dos visitantes quando o regresso for possível.

No entanto, o efeito mais incisivo desta crise nos museus parece ter sido a transformação digital. De alguma forma, todos estes museus já seguiam uma estratégia digital, com website, bases de dados das coleções acessíveis, divulgação de eventos nas redes sociais. Divergiam, porém, quer na quantidade e qualidade dos conteúdos, quer, sobretudo, na importância que atribuíam a esta estratégia. Nesta altura, é manifesta a unanimidade de todos face ao potencial das tecnologias de informação e de comunicação na relação com audiências alargadas. A comunicação digital, complementada pela presença ativa e dialogante nas redes sociais, tornou-se o elemento forte da resposta dos grandes museus à crise.

O Rijksmuseum, uma referência neste domínio, foi um dos primeiros a assumir a vertente virtual como uma ferramenta de comunicação paralela à efetuada no espaço físico do museu. No entanto, Taco Dibbits apresentou competências adicionais à digitalização da coleção em imagens de grande qualidade: a captação de detalhes que facultam uma observação complementar à visualização direta; a utilização de reproduções digitais à escala para levar o museu ao exterior, nomeadamente, junto de grupos eventualmente marginalizados, afastados do espaço do museu, ou não contemplados na sua programação regular. Taco Dibbits salientou ainda que, embora a digitalização seja um negócio emergente, o Rijksmuseum disponibiliza os produtos digitalizados gratuitamente, sugerindo uma matriz de disponibilização democrática do património.

Também o Louvre acabou de lançar um novo website, onde estão disponíveis todas as coleções do museu, não só as que se encontram expostas, como também as que se encontram dispersas em reservas. Segundo Dominique de Font-Réaulx, o novo website foi um sucesso com um número de acessos significativamente mais elevado. Esta indicação é relevante, se considerarmos a observação de Karina Marotta acerca dos estudos de públicos virtuais, cujas métricas são recolhidas de forma automática.

A importância das ferramentas digitais nos museus de arte e de história foi salientada por Bruno Maquart, ao fazer o contraponto com os museus de ciência onde os objetos não são apenas mostrados, mas experimentados, dado que não é possível transpor a interação multissensorial para o ambiente virtual. No entanto, Maquart identificou um novo parâmetro a considerar: as audiências mais abertas ao conhecimento e à investigação científica. Por seu turno, Mikhail Piotrovski reconheceu que estes visitantes chegaram mais preparados ao museu, conhecendo aquilo que iam ver, muito graças à divulgação virtual das coleções. Também Daniel Slater identificou esta alteração e, prevendo que as audiências internacionais irão demorar a voltar, assume a preocupação em reter estes visitantes e em manter uma audiência mais intelectualizada. Mais do que um lugar de aprendizagem, o museu passou a converter-se num espaço de diálogo e de discussão, tal como referiram Mikhail Piotrovski e Bruno Maquart. Neste sentido, prevê-se a elaboração de discursos em torno dos temas mais marcantes (e polémicos) da atualidade, como o do passado colonial e esclavagista, em preparação no museu holandês.

Nos períodos de abertura entre confinamentos, foi nítida a vontade de regressar aos museus e às exposições, mas também o gosto pelos espaços mais desanuviados, permitindo experiências mais intimistas, ritmos de visita mais lentos e uma observação mais atenta e refletida dos objetos expostos, o que confirma a necessidade de criar novas narrativas. Estas, ainda que complementadas com estratégias de informação e comunicação digital, são o valor identitário do museu. É consensual, de alguma forma referida por todos os participantes, a necessidade de estimular a criatividade e de encontrar estratégias sustentáveis e de baixo custo que, por um lado, compensem a perda de visitantes e, por outro lado, se ajustem às comunidades locais. Também, neste ponto, o museu reencontra os seus desígnios primordiais, promovendo a cidadania e conectividade entre todos. Como sintetizou Luís Raposo, numa feliz analogia ao tema de Simon & Garfunkel, o museu, assente nos três pilares da curadoria, educação e investigação, surge como uma ponte sobre as águas revoltas desta crise.

Imagem de topo: pormenor da  ilustração “I looked upon the rotting sea, and draw my eyes away” de Gustave Doré, in Coleridge , S. T., & Doré, G. (Illust.) (1878). The rime of the ancient mariner. New York: Harper & Brothers.

Cite this article as: Roque, Maria Isabel, "Os museus face ao Covid: Uma ponte sobre águas revoltas," in a.muse.arte , 2021/03/31, https://amusearte.hypotheses.org/7194.
  1. A gravação da conferência está integralmente disponível em http://icom-europe.mini.icom.museum/activities/conferences/

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