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Os museus, entre a crise e a transformação

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No início da pandemia Covid-19, a UNESCO elaborou o relatório  Museums Around the World in the Face of COVID-19 (2020, maio). Já nessa altura, era nítida a crise que se instalava no setor, após uma década de vertiginoso crescimento, com um aumento de 60% no número de museus entre 2012 e 2020: 85.000 museus, isto é, quase 90% dos museus registados em todo o mundo, foram obrigados a encerrar. Era igualmente percetível que o impacto do encerramento dos museus era, não só económico, como também social e que a recuperação da crise seria demorada.

Aviso de encerramento do Mosteiro dos Jerónimos e Museu de Arqueologia devido ao Covid-19
Foto: Lusa, 2020

No entanto, o relatório destacava a resiliência dos museus e a forma como o setor reagira desenvolvendo atividades na internet e, em particular, nas redes sociais, de forma a manter ativa a ligação ao público. Salientava, ainda, que este esforço estava em sintonia com a Recommendation concerning the protection and promotion of museums and collections, their diversity and their role in society (UNESCO, 2015), na qual era destacada a importância das tecnologias da informação e da comunicação para que o museu desempenhasse o papel que lhe compete para a educação e o desenvolvimento da sociedade. O relatório registava 800 ações neste domínio, incluindo, além da passagem para suporte digital de atividades programadas, como exposições e conferências, atividades nas redes sociais, webinars, jogos, questionários e outras atividades educativas e lúdicas. No entanto, se estas ações foram promovidas em todos os continentes, o seu grau de incidência não era uniforme, restringindo as ações mais inovadoras aos museus onde o investimento em tecnologia digital já era corrente, sendo quase inexistentes no estados africanos e nos denominados Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento.

Aviso de distanciamento social no interior do museu
Imagem da capa do relatório do ICOM (2020).

Quase em simultâneo, também o ICOM apresentou um relatório intitulado Museums, museum professionals and COVID-19 (ICOM, 2020), elaborado a partir de um inquérito aplicado a uma amostra de 1600 museus e profissionais de museu de 107 países, entre 7 de abril e 7 de maio de 2020, reportando-se, por conseguinte, à primeira fase da pandemia. Os números são idênticos aos apresentados no relatório da UNESCO: 95% dos museus estavam encerrados e 13% encaravam o encerramento como definitivo. Os projetos e programas diminuíram em 80% dos museus. A ameaça era mais forte nas regiões onde os museus são mais escassos e recentes e as estruturas existentes são também mais frágeis.

Um terço dos museus viu-se forçado a reduzir o pessoal. A maior parte dos profissionais de museu encontrava-se a trabalhar à distância (84%), enquanto 56% dos trabalhadores temporários viram o pagamento suspenso, 16% foram dispensados e 23% não tiveram os contratos renovados. Também neste aspeto, eram assinaladas as assimetrias entre regiões.

Contudo, esta clivagem era particularmente assinalada no âmbito da comunicação digital. A resposta mais imediata ao encerramento dos museus foi a transferência da comunicação do espaço físico do museu para o mundo virtual, com um incremento das visitas virtuais e das interações remotas com o público através das redes sociais. Se isto, por um lado, evidencia a capacidade de adaptação à crise, por outro lado, desvenda as fragilidades estruturais, em termos de recursos humanos e financeiros afetos às tecnologias de informação e comunicação. Provou, além disso, o caráter incipiente desta resposta que, na maioria dos casos, se limitou a transferir estratégias analógicas para o suporte digital. Apenas 26% dos museus tinha pessoal dedicado às atividades digitais a tempo inteiro, enquanto 56% tinha pessoal a trabalhar parcialmente neste tipo de tarefas. Apenas 5% dos museus adjudicam mais de 15% do seu orçamento às atividades digitais, sendo que 42% lhes dedicam menos de 5% (24%, entre 1 e 5% do orçamento; 18%, menos de 1%). Durante o confinamento, todas as atividades digitais (coleção em linha; exposições virtuais; eventos em direto; newsletters; podcasts; questionários e concursos; redes sociais) aumentaram durante o confinamento. A presença nas redes sociais incrementou em 47% dos museus e manteve-se no registo anterior em 42%. Nas atividades iniciadas após o confinamento, destaca-se as exposições virtuais e os eventos em direto. Também, neste aspeto, se verificam assimetrias na capacidade de atingir os públicos remotamente, embora as divergências sejam muito atenuadas no âmbito particular das redes sociais.

No entanto, tal como é repetido ao longo do relatório, os dados coletados nas zonas com menos recursos são limitados, pelo que os percentuais podem variar significativamente.

Também no início da pandemia, a NEMO – Network of European Museum Organisations implementou um estudo sobre o impacto da pandemia COVID-19 nos museus europeus, mapeando a forma como lidaram com o encerramento que lhes foi imposto numa primeira fase e com a diminuição dos visitantes após a progressiva e limitada reabertura. Os resultados desse estudo foram publicados, em dezembro último, no Full report on the impact of the COVID-19 on museums in Europe (NEMO, 2020) o qual confirmava, na generalidade, os resultados apresentados no relatório ICOM/UNESCO e incluía um conjunto de recomendações formuladas a partir das conclusões obtidas (vd. Covid 19: ponto de viragem para o museu do futuro?).

Passado um mês, foi publicado o Follow-up survey on the impact of the COVID-19 pandemic on museums in Europe: Final report (NEMO, 2021). Embora o relatório seja relativo ao inquérito entre 30 outubro e 29 novembro, com uma amostra de 600 museus (a que corresponde uma percentagem de 2%, em relação a um número total aproximado da comunidade de 30.000 museus europeus que representa, cfr. NEMO, 2021), distribuídos por 48 países, o documento já refere as ameaças do prolongamento da crise e da nova fase de restrições provocada pelo agravamento da pandemia.

Os resultados mais imediatos são a abrangência do encerramento (70% dos museus ficaram fechados), a diminuição do número de visitantes (a maioria com quebras entre os 25 e os 75%) e a consequente perda de receitas, devido à queda do turismo global (73%), à descontinuação dos programas escolares (64%) e comunitários (50%) e à necessidade de introdução dos protocolos de segurança impedindo a entrada de grupos numerosos (53%). Além disso, regista-se a consciência de que a recuperação será lenta e desigual, apesar da previsão otimista de que o número de visitantes retornará aos níveis anteriores até ao verão do próximo ano. Os apoios de emergência que os governos têm vindo a atribuir às instituições culturais procuram compensar a perda de receitas no plano imediato, mas não constituem uma solução sustentável a médio e longo prazo. Cabe ao museu redefinir-se na sua missão, nas funções a cumprir, nos objetivos a alcançar. Os riscos e ameaças que os museus enfrentam poderiam ser combatidos através da elaboração de políticas mais abertas, mais inclusivas e mais centradas na comunidade, próxima ou alargada.

Visita virtual da exposição “Rembrandt et le portrait à Amsterdam 1590-1670”, no Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid
2020

Em contrapartida, a pandemia teve um impacto muito positivo no que respeita à oferta digital, fortemente incrementada com o encerramento do espaço físico dos museus: desde o início da pandemia, a maioria dos museus respondentes iniciou ou ampliou os serviços digitais (93%), aumentou a atividade nas redes sociais (75%) e começou ou aumentou a produção de conteúdos vídeo (53%). A questão é se o desenvolvimento dos serviços digitais é uma ação reativa e circunstancial, ou enquadrada numa programação consistente e de longo prazo.

De facto, se mais de um terço dizem ter aumentado o orçamento para incrementar a comunicação virtual, apenas 7% referiram ter contratado uma nova equipa parar gerir as tarefas que lhe estão relacionadas, enquanto 40% reconhece ter alterado as tarefas atribuídas ao pessoal do museu direcionando-as para estas atividades. Isto implica que esta viragem se faz à custa do seu conhecimento empírico e da flexibilidade das competências dos recursos humanos existentes em cada museu. Sem diminuir o altíssimo mérito dos profissionais que, face a circunstâncias extraordinárias, se reinventaram no domínio das suas funções e assumiram incumbências que lhe eram extrínsecas ou marginais, o seu desempenho será mais rudimentar e irregular do que os técnicos especializados nas áreas da informação e da comunicação digital e dos métodos, técnicas e instrumentos que lhe são específicos. Da mesma forma, sem desmerecer a importância destas respostas a curto prazo, a forma como os serviços digitais se desenvolveram durante a pandemia não se configuram como projetos de continuidade a longo prazo, solidamente apoiados na investigação científica e tecnológica.

A constatação deste facto prende-se com a disparidade entre os museus de maior ou de menor dimensão. Enquanto que a maioria dos museus maiores, ou seja, aqueles que já tinham implementado uma política de comunicação virtual, aumentou a atividade digital durante a pandemia (81%), nos museus menores este impacto foi consideravelmente menor (47%). Em paralelo, também a maioria dos museus referiu a necessidade de um apoio adicional para a transição digital, em termos de assistência para elaboração de uma estratégia (40%), de implementação de infraestruturas (23%) e de formação de pessoal (19%). O efeito mais relevante da crise nos museus é o impacto digital, o qual, por sua vez, trouxe novas. Na métrica dos resultados deste inquérito, são estes os temos em maior destaque na nuvem de palavras.

Mapa das iniciativas digitais em museus europeus durante a pandemia Covid-19
Fonte: Europeana, 2020

A Europeana disponibilizou um mapa ilustrativo das atividades digitais promovidas pelos museus europeus durante a pandemia (Museum digital initiatives during the Coronavirus Pandemic), elaborado no âmbito de um projeto de investigação coordenado por Chiara Zuanni, professora e investigadora em humanidades digitais no Center for Information Modeling da Universidade de Graz (Zuanni, 2020). Os dados recolhidos estão estruturados em oito categorias: projetos de colecionismo contemporâneo; iniciativas nas redes sociais (ou seja, hashtags locais e projetos direcionados); streaming de conteúdo; visitas virtuais; exposições em linha; jogos; conteúdo educacional; e outros tipos de atividades (para iniciativas não contempladas nas categorias anteriores). Também aqui se reforça ideia de que as atividades nas redes sociais predominam sobre as restantes categorias, sublinhando a interação imediata com os públicos virtuais.

Contra os efeitos negativos do confinamento provocado pela pandemia – diminuição de visitantes, quebra de receitas, abandono de projetos, redução das equipas e a maior abrangência das tarefas que lhes são atribuídas – o impacto digital parece ser o único aspeto positivo desta crise. No entanto, o desenvolvimento de serviços digitais, sobretudo relacionados com a divulgação e interpretação da coleção e com a comunicação com públicos tradicionais e emergentes, é também ele ameaçado pelos restantes aspetos desta crise.

O recurso ao digital foi uma resposta imediata ao encerramento dos museus, mas não conseguirá impor-se se continuar a faltar uma estratégia de continuidade para o futuro e o seu efeito positivo acabará por se diluir em ações medianas de alcance limitado, sem beneficiar das experiências que tem vindo a acumular e dos públicos que tem vindo a adquirir.

Mona Lisa: Beyond the Glass (Fr.: En tête-à-tête avec la Joconde): experiência de realidade virtual no âmbito da exposição retrospectiva “Leonardo da Vinci”
Emissive e HTC Vive Arts, 2020
Paris, Musée du Louvre

Agora que a pandemia se agrava entre nós e que o confinamento é reposto, torna-se cada vez mais evidente a gravidade da crise que desafia os museus, entre muitas ameaças e algumas oportunidades.

Quando voltarem a abrir as portas, os museus já não serão o que foram. Talvez, até, ninguém queira que – sobretudo os grandes museus – voltem a ser aquilo em que se estavam a tornar. Apenas as coleções serão as mesmas, conservando a aura de autenticidade e permanência que as torna imprescindíveis à construção da nossa memória e identidade. Os visitantes serão outros e serão diferentes. As experiências no museu serão mais extensivas e globalizantes, mas também mais pessoais e introspetivas, num ambiente mais amplo e fluido entre o espaço físico e o mundo virtual. A aprendizagem e a fruição tendem a fundir-se na aquisição do conhecimento. Nestas circunstâncias, em que os públicos – aqueles que o museu precisa de trazer de volta e, também, aqueles que surgiram durante o confinamento – são cada vez mais diferenciados e complexos, a comunicação virtual afirma-se como um fator essencial desta transformação. No entanto, quando voltarem a abrir as portas, que museus irão querer desenvolver os canais virtuais de acesso às coleções? Que museus irão desenvolver projetos digitais? Que museus irão investir em projetos de inovação, redistribuindo os recursos financeiros, humanos e tecnológicos até agora centrados na programação interna? Que museus estarão interessados em manter as audiências conquistadas nos ambientes virtuais e trazê-los para o interior do espaço expositivo? Que museus estarão a equacionar alterações no percurso da exposição e no discurso museológico, adaptando-os aos novos públicos e criando alternativas para a massificação turística do passado? Que museus estão a definir estratégias para quando o confinamento acabar? Que museus estrarão efetivamente preparados para a mudança?

Visita (presencial e virtual) no museu Louvre Lens
Lens, Louvre Lens, France
Foto: COURBE/ZUMA PRESS

Referências:
ICOM. (2020, 26 maio). Museums, museum professionals and COVID-19. Acedido em https://icom.museum/en/news/museums-museum-professionals-and-covid-19-survey-results/
NEMO (2020, maio). Full report on the impact of the COVID-19 on museums in Europe. Acedido em https://www.ne-mo.org/fileadmin/Dateien/public/NEMO_documents/NEMO_COVID19_Report_12.05.2020.pdf
NEMO (2021, jan.). Follow-up survey on the impact of the COVID-19 pandemic on museums in Europe: Final report. Acedido em https://www.ne-mo.org/fileadmin/Dateien/public/NEMO_documents/NEMO_COVID19_FollowUpReport_11.1.2021.pdf
UNESCO. (2015). Recommendation concerning the protection and promotion of museums and collections, their diversity and their role in society. Acedido em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000246331
UNESCO. (2020, maio). Museums Around the World in the Face of COVID-19. Acedido em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000373530 
Zuanni, C. (2020). Mapping museum digital initiatives during COVID-19. In Europeana pro. Acedido em https://pro.europeana.eu/post/mapping-museum-digital-initiatives-during-covid-19

Cite this article as: Roque, Maria Isabel, "Os museus, entre a crise e a transformação," in a.muse.arte , 2021/01/24, https://amusearte.hypotheses.org/7010.

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